segunda-feira, 14 de junho de 2010

[trecho] Schopenhauer - Dores do Mundo

Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encontra obstáculos, do mesmo modo
na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre incosciente e descuidosa, quando coisa
alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção desperta, é porque a vontade não era livre e se produziu
algum choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste,
isto é, tudo que há de desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não
atentamos na saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta; não
apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante que
nos desgosta. — O bem-estar e a felicidade são portanto negativos, só a dor é positiva.
Não conheço nada mais absurdo que a maior parte dos sistemas metafísicos, que explicam o
mal como uma coisa negativa; só ele, pelo contrário, é positivo, visto que se faz sentir... O bem, a
felicidade, a satisfação são negativos, porque não fazem senão suprimir um desejo e terminar um
desgosto.
Acrescente-se a isto que em geral achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa, ao passo
que as dores a excedem grandemente.
Se quereis num momento esclarecer-vos a este respeito, e saber se o prazer é superior ao
desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a impressão do animal que devora outro, com a
impressão do que é devorado.
***
A mais eficaz consolação em toda a desgraça, em todo o sofrimento, é voltar os olhos para
aqueles que são ainda mais desgraçados do que nós: este remédio encontra-se ao alcance de todos.
Mas que resulta daí para o conjunto?
Semelhantes aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o carniceiro faz a sua
escolha no meio do rebanho, não sabemos, nos nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara
precisamente a essa hora — doença, perseguição, ruína, mutilação, cegueira, loucura, etc.
Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer.
Na vida dos povos, a História só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos
intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E da mesma maneira a vida do homem é um combate
perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros
homens. Em toda a parte se encontra um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão.

Schopenhauer, Dores do Mundo, Coleção Universidade

0 comentários:

Postar um comentário